É com a desenvoltura de um antigo morador que o designer Ricardo Ohtake, 69, desenha um mapa para situar a rua do bairro da Mooca em que cresceu. Rua da Paz, número 96. A casa já não existe mais, a rua agora é Rua do Lirismo, mas as referências de Ricardo são bem vivas e precisas. Rua da Mooca, Rua Luís Gama, Rua Wandenkolk, Rua da Figueira. O filho da artista plástica Tomie Ohtake, 98, e irmão do arquiteto Ruy Ohtake, 74, é o porta-voz da família para relembrar os anos em que o clã de japoneses viveu entre os italianos da Mooca. “É engraçado porque não tinha um japonês por perto. Mas tinha muito italiano. Eu me lembro muito bem dos sobrenomes: Pugliesi, Cappo, Benedetti, Parisi, Barsote. Tinha até uns espanhóis e um russo”, relembra.
O presidente do Instituto Tomie Ohtake, um dos redutos da arte contemporânea de São Paulo, parece ter a Mooca na palma da mão. “Ah, o bairro todo não! Mas esse pedaço eu conheço muito bem. Na Rua da Mooca, depois da linha do trem, tem a Imprensa Oficial. Tem também aquela doceria incrível, a Di Cunto”. Essa memória é resultado das mais de três décadas em que a família Ohtake viveu no bairro dos italianos. Ricardo passou a infância e adolescência na região, onde permaneceu até terminar a faculdade de arquitetura na USP (Universidade de São Paulo), em 1970. “Depois mudei para o Brooklin, onde estou até hoje”.
A história desses japoneses com o bairro que recebeu os imigrantes italianos começou em 1936, quando Tomie veio ao Brasil para visitar um irmão que tinha uma empresa no País e já morava na Mooca. “Meu tio voltou para o Japão para participar da guerra do Pacífico, que era contra a China, e a minha mãe não pôde embarcar porque não ia participar de nada urgente no Japão. Ela foi ficando, conheceu meu pai, casaram-se e o Ruy e eu nascemos”.
Na pequena Rua da Paz, a família tinha uma vida simples e típica daquela época. Até enchentes enfrentaram. “A casa era pequena e a rua inundava, pois fica a um quarteirão do rio Tamanduateí”, conta. “Como saí de lá adulto, fiz amigos, mas os vejo pouco porque cada um foi para um lugar. E nenhum deles foi para a arte. Meu irmão e eu estudamos no Instituto Salesiano – Dom Bosco. Minha mãe dizia que como íamos ficar no Brasil, teríamos de levar uma vida de brasileiro. E já que aqui a maioria era católica, seus filhos iriam estudar em um colégio católico. Depois, fomos estudar em um colégio público no parque Dom Pedro. Chamava-se Colégio Estadual Presidente Roosevelt e, depois que o Ruy saiu, mudou de nome para Colégio Estadual de São Paulo. Era um dos melhores colégios públicos da cidade. Naquela época, escola pública tinha exame de admissão. O Ruy entrou em primeiro lugar e eu em quinto”.
O ateliê
A casa da Mooca, com jardim em frente, foi onde Tomie começou sua vida artística. Mais precisamente, foi na sala de jantar que ela começou a pintar. “Ela ficava em um cantinho e precisava montar e desmontar todo o material de pintura diariamente. Era uma bruta trabalheira”, relembra o filho. Os primeiro quadros eram pequenos mas, com o tempo, a artista sentiu necessidade de fazer obras de maiores dimensões. Aí, a casa da família precisou ser rearranjada para que Tomie pudesse trabalhar. E lá se foi a sala de visitas, transformada em ateliê. “Foi assim que ela teve um ateliê um pouco maior, que não media mais do que 3X3. Mas lá ela podia deixar montados os tripés com as telas e não tinha necessidade de limpar as palhetas todos os dias. Só tinha um problema. Como a sala era muito pequena, quando queria ver um quadro grande de longe ela precisava sair para o jardim e olhar pela janela”, conta Ricardo.
A movimentação artística na casa da família Ohtake começou quando Tomie tinha 39 anos, no início dos anos 1950, e já estava com os filhos criados. O Ruy, inclusive, se formou arquiteto na mesma época em que sua mãe começou a pintar. “A vida de pintora dela e a vida de arquiteto dele foram simultâneas, um não influenciava muito o outro. Comigo foi diferente. Recebi influência direta dos dois”, diz o filho designer.
Com essa vida artística pulsante, a casa da Mooca recebeu muitas visitas ilustres como Ciccillo Matarazzo (mecenas e criador do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do TBC – Teatro Brasileiro de Comédia- e da Companhia Cinematográfica Vera Cruz), o crítico de arte Mário Pedrosa e o médico Osório César (psiquiatra que foi marido da Tarsila do Amaral, médico do Hospital Psiquiátrico do Juqueri e responsável por incentivar os internos a pintarem e desenharem). A arte, enfim, era pulsante na casa da Mooca.
A família
Tomie Ohtake
A artista plástica nasceu no Japão, em 1913. Está com 98 anos. Além dos quadros, sua obra também é repleta de gravuras, serigrafias e esculturas. Muitas dessas últimas são grandiosas e estão expostas em espaços públicos do País. Em São Paulo, uma das mais conhecidas é o conjunto de curvas em concreto armado que fica na Avenida 23 de Maio, em frente ao Centro Cultural São Paulo. Tem também os painéis feitos em pastilhas vitrificadas que ficam na Estação Consolação do Metrô.
Ruy Ohtake
Filho mais velho Tomie Ohtake, é um arquiteto reconhecido e premiado desde a década de 1960. Em São Paulo, é o nome por trás de prédios como o Hotel Unique (na Avenida Brigadeiro Luis Antônio), Renaissance Hotel (localizado na Alameda Santos), Expresso Tirandentes, Conjunto Habitacional Heliópolis, entre outros.
Ricardo Ohtake
Ricardo Ohtake formou-se em arquitetura, mas preferiu seguir a carreira de designer gráfico. “Até hoje só fiz um projeto de arquitetura, que foi uma galeria de arte”. Nos anos de 1993 e 1994, foi Secretário Estadual de Cultura. Em 1999 e 2000 ocupou o cargo de Secretário Municipal do Verde e Meio Ambiente e diz orgulhar-se de ter estado à frente da revitalização do Parque da Luz. Presidente do Instituto Tomie Ohtake desde a sua fundação, em 2001, ele também esteve à frente do Centro Cultural São Paulo, Museu da Imagem e do Som e Cinemateca Brasileira. Ricardo também tem vários livros publicados, entre eles dois sobre o arquiteto Oscar Niemeyer, um falando sobre a vida e a obra de Niemeyer (Folha Explica – Oscar Niemeyer) e outro que faz uma lista de 100 obras do arquiteto (Oscar Niemeyer – 100 anos 100 obras).
Mooca hoje
Embora não more mais no bairro e não o visite com frequência, Ricardo acompanha o desenvolvimento da região em que nasceu e cresceu. E se mostra um entusiasta da revitalização e preservação de pontos históricos da Mooca. “Não acho que um bairro tenha que ser preservado porque é antigo, mas é importante preservar quando se tem coisas relevantes. Na Mooca, há algumas fábricas interessantes que merecem ser preservadas. Esses lugares ficariam ótimos se fossem revitalizados e dessem espaço a um Centro Comunitário. Porque, entre os bairros mais antigos, o da Mooca é um dos que tem mais vida comunitária. Isso precisa ser valorizado, porque são pessoas que gostam da cidade”, diz. “Os espaços lindeiros à linha férrea, se forem bem tratados, vão ficar incríveis, inclusive aproveitando aqueles armazéns”, completa.