A vida caótica na cidade de São Paulo, onde histórias e personagens parecem brotar a cada esquina, e a violência que insiste em não nos deixar em paz, são parte da matéria-prima da obra de Fernando Bonassi. Escritor, roteirista e dramaturgo, ele nasceu na Mooca, viveu pelas ruas do bairro durante dez anos e continua frequentando a região, já que parte da família e bons amigos ainda vivem pelas redondezas. Muitos de seus personagens literários, aliás, foram inspirados em histórias vistas e vividas na Mooca. “Foi onde conheci gente que vive do seu trabalho e sofre com as limitações materiais e espirituais desta vida que temos”, diz.
Para além da literatura, Bonassi tem uma atuação muito forte na dramaturgia e em roteiros de cinema. É um dos que assinam o roteiro do recente Lula o Filho do Brasil, o polêmico longa sobre a vida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pelas suas mãos também passaram os roteiros de Os Matadores, Estação Carandiru, Castelo Rá-tim-bum etc. Atualmente, trabalha na elaboração do roteiro da segunda temporada do seriado Força-Tarefa, da TV Globo, ao lado do parceiro Marçal Aquino. Foi na casa de Marçal, aliás, que Bonassi recebeu a nossa equipe para uma sessão de fotos.
Confira a entrevista a seguir.
Em textos biográficos seu nome sempre aparece associado ao bairro da Mooca (Fernando Bonassi, paulista da Mooca). Você é um daqueles “mooquenses” fanáticos?
Eu nasci na Mooca em 1962, na falecida Maternidade Santa Terezinha, que ficava na Avenida Paes de Barros e sim, desde então cultivo uma relação e um “interesse” pelo bairro. Não diria que sou um daqueles “mooquenses fanáticos” não. Aliás, eles sempre me pareceram meio bobões – prefiro ser do tipo internacionalista. Mas o fato é que vários amigos, minha mãe e minha irmã ainda moram na Mooca e eu vou muito ao bairro. O mais importante, talvez, seja que em todos os períodos em que vivi na Mooca, eu fui feliz. Conheci pessoas incríveis, especialmente as mulheres (doces, densas e inteligentes), fui inclusive ‘desvirginado’ por uma delas, tudo sempre no bairro, de modo que isso marca a gente. Além do mais, o bairro sempre me pareceu amistoso. Identifico-me até hoje com as esquinas de oficinas falidas, os muros de tijolos aparentes da Rua Borges de Figueiredo, as ruas de paralelepípedo, mas também com as mudanças causadas pela especulação imobiliária que ocorre atualmente na região da Radial Leste, na divisa com o Tatuapé, por exemplo. As coisas mudam. A Mooca e eu mudamos também.
Em suas histórias, há personagens inspirados na época em que viveu na Mooca?
Todos os meus personagens guardam relação com a experiência no bairro. Vivi anos importantes ali, mas o que me é mais inspirador é pensar que foi onde conheci gente que vive do seu trabalho e sofre com as limitações, materiais e espirituais, desta vida que temos. Por isso, me tornei escritor.
Como você começou na carreira de escritor, roteirista etc?
Na origem, queria ser escritor, mas vivi e vivo um tempo de criação e transformação das mídias, de forma que sempre me interessei pelas outras oportunidades além da página impressa. Os desafios de linguagem são bacanas também. Enquanto o escritor vive extremamente solitário, o roteirista é obrigado a discutir seu texto e debater ideias de (e com) muita gente – são experiências diferentes, mas igualmente poderosas.
Como surgiu o convite para trabalhar no roteiro de Lula O Filho do Brasil?
Parte da minha atividade profissional de roteirista consiste em receber roteiros cinematográficos já escritos e me manifestar sobre eles. Quando recebi o roteiro de Fábio Barreto, Denise Paraná e Daniel Tendler, fiz algumas observações que eles gostaram, então eu fui contratado para aportar essas minhas ideias ao roteiro final. Trabalhei sobre uma versão já bastante desenvolvida por eles.
Durante algum tempo, você vivenciou o ambiente do ABC paulista. Isso te ajudou na hora de fazer o roteiro do filme?
Fui operário nas franjas da cidade de São Paulo e no ABC no final dos anos 1970 e vivi os últimos anos da ditadura dentro da fábrica, com o medo, os dedos-duros de praxe e, ao mesmo tempo, o espanto com um novo movimento sindical que emergia fora dos velhos partidos comunistas. Era coisa de alta voltagem esse ambiente, que ungiria em herói o protagonista do filme, de forma que eu tinha algo pra dizer sobre aquilo.
A pergunta é inevitável: você votou no Lula? É possível fazer uma avaliação do governo?
Votei no Lula sim e acho que ainda não há nada melhor no cenário político para se votar. No entanto, o governo é menor do que eu desejo como cidadão eleitor. Em nome da governabilidade, fizeram-se alianças com gente que eu não aprovo. Discordo que essa seja a única forma de se fazer o País andar.
Agora você está trabalhando no roteiro para o seriado Força Tarefa, da TV Globo. É uma série que fala sobre a polícia. Você também foi roteirista de filmes como Os Matadores e Estação Carandiru. O que te atrai nesse tema? De onde vem a inspiração para as histórias?
A inclusão cultural das periferias das nossas grandes cidades é o fato social mais importante do Brasil depois da ditadura. A violência acompanha essa inclusão, pois os ricos a repelem. Esse conflito, com todas as suas dimensões políticas, é um assunto dessa geração. Não escapamos dele e não escaparemos se quisermos fazer desta piada, um País, enfrentando de fato o crime organizado, especialmente o que se encontra encravado no Estado. E de mais a mais, numa cidade onde 20 milhões de seres convivem, as coisas sempre acontecem. Se você abrir os olhos e os ouvidos, não passa necessidade pra criar literatura por aqui.
O que você acha dessa onda de violência que a gente assiste ao vivo pela televisão?
Se os exemplos dos líderes do executivo, legislativo e do judiciário fossem melhores, a violência seria menor. Mas o fato é que sabemos que há bandidos na polícia, usurpadores com imunidade parlamentar e as sentenças mais importantes sempre beneficiam quem já têm direitos demais, em detrimento dos que têm de menos.
Você tem medo de viver numa cidade como São Paulo?
Claro que sim! Tolo de quem não tem e não trabalha com os códigos secretos de nossa civilidade selvagem.