Mestre cervejeira 0 6716

Ela entende mais de cerveja do que muito homem. E ainda degusta uma bebida com 25% de álcool sem descer do salto

Vai ser difícil encontrar um homem que faça comentários do tipo “isso é cerveja de mulher” estando frente a frente com Cilene Saorin, mestre cervejeira e sommelier de cerveja que, diariamente, degusta diversos rótulos, incluindo os fortes e encorpados, como uma Samuel Adams Utopias, com 25% de álcool (as cervejas mais comuns têm entre 4,5% e 5,5%). Seu trabalho contempla desde a concepção e produção de cerveja, até a elaboração de cartas para restaurantes ou treinamento de garçons e maitres, para que saibam exatamente qual produto oferecer a seus clientes.

Nascida e criada na Vila Prudente, Cilene é o tipo de mulher que não se intimida com quem quer que seja, principalmente se forem homens querendo dar uma de machão. “Um dos pontos que me fizeram seguir adiante foi o desafio de entrar em uma área que era essencialmente masculina. E logo nos primeiros cinco anos, o que eu mais ouvi foram frases do tipo ‘o que você está fazendo aqui? Não é lugar de mulher!’”.

Curiosamente, a história da cerveja nos mostra que essa realidade machista não fazia parte do mundo cervejeiro de antigamente. Em algumas culturas, como a Viking e a Inca, as mulheres eram as grandes produtoras de cerveja e eram imensamente respeitadas por isso. Hoje, ao contrário, a relação entre mulher e cerveja ganhou ares de promiscuidade. Mas é um cenário que pode mudar à medida que o conhecimento sobre a bebida também muda, já que a cerveja pode ser tão refinada e elegante quanto o vinho. “Mas é preciso extrapolar essa ideia de que cerveja é apenas aquela que a gente encontra na esquina”, avisa Cilene. São mais de 120 estilos diferentes, e cada um possui diversas outras subdivisões, o que já nos dá um panorama do quão complexo pode ser esse mundo.

O primeiro trabalho de Cilene na área foi um estágio na Brahma, no qual fez de tudo um pouco, principalmente colocar a mão na massa durante a produção. “Com esse trabalho pude ter contato com a cerveja de uma forma diferente da que eu tinha em boteco com amigos, que era algo raso e superficial. O mestre cervejeiro me deu uma chance de entender um pouco mais todas as influências que aquele processo oferecia ao produto final. E essa interseção começou a me fascinar também”.
Mas, para chegar até aí, ela precisou “viajar” todos os dias da Vila Prudente até São Caetano do Sul, onde ficava a faculdade. E outros desafios vieram, como conseguir bolsa de estudos na faculdade, morar sozinha no exterior e, talvez o mais complicado, enfrentar o preconceito dentro do meio em que escolheu para trabalhar. E a determinação, uma característica que fica muito evidente quando se conversa com ela, foi fundamental. “Lá nos primeiros cinco anos, se eu não tivesse tido a certeza do que eu queria, teria desistido no primeiro tempo. Porque você não vai ficar ouvindo um bando de marmanjo dizer que você não é capaz porque é mulher, magra e não tem barriga. Acredite se quiser, de tudo eu já ouvi na vida. Inclusive de você ter medida a sua competência pelo tamanho do seu abdominal. É a coisa mais ridícula que pode existir”.

Hoje, 18 anos depois daquele primeiro estágio na Brahma, Cilene já é vista de outra forma. “Isso tem acontecido aos poucos, com a disseminação da cultura cervejeira, e com as pessoas mais interessadas em ter exatamente o mesmo ritual que eu assumi para a minha vida: beber menos e beber melhor”. E esse beber menos não significa beber uma vez por semana, mas sim todo dia. Cilene se dedica diariamente ao ritual de degustar cervejas, às vezes mais do que uma. “Eu não tenho condição de me apresentar como mestre cervejeira ou sommelier, se eu não tenho esse exercício diário”. Mas não pense que ela entorna litros da bebida a cada degustação. O ritual não demanda mais do que quatro pequenos goles a cada rótulo. Ao alcance das mãos sempre fica um caderninho que funciona como um diário de bordo, um lugar no qual ela anota todas as observações feitas durante a degustação.

Óbvio que, pelo caminho, ela encontra produtos que são mais agradáveis ao seu paladar do que outros, mas não pode se deixar influenciar por isso. “Quando se trata de degustação em trabalho, as preferências pessoais devem sempre estar em segundo plano e dar lugar às informações sensoriais que ajudem a alcançar os objetivos do projeto. Agora, quando uma cerveja apresenta defeitos, esta certamente desagrada a todos, inclusive a mim… (risos)”.

Cilene degusta cerveja todos os dias, às vezes mais do que uma, mas nunca passa de quatro goles de cada rótulo

Lá na Vila Formosa…

Hoje, Cilene viaja o mundo por causa da sua profissão, mas não deixa cair no esquecimento os 20 anos em que viveu na Vila Formosa. “Se você não respeita ou valoriza o que teve no passado, não consegue valorizar o que tem hoje”, enfatiza.

Embora more em outro bairro, as lembranças daquela época são muito vibrantes, até porque sua mãe ainda mora por esses lados, e remontam a uma fase que, para ela, foi fundamental na consolidação da carreira: a época do estudo. “Eu passei os 20 primeiros anos da minha vida estudando muito. Porque, felizmente, meus pais me deram essa chance. Eu tive esse privilégio, deles trabalharem muito e oferecerem a possibilidade de eu estudar”.

A história de amor com o bairro começou ainda com os pais, que se conheceram na Vila Formosa e moraram juntos, no bairro, até o ano passado, quando o pai de Cilene faleceu.

“Toda a minha infância e adolescência foi na Vila Formosa. Eu me lembro que, quando criança, minha avó me ligava na hora em que o bolo estava pronto e eu saía de casa, descia uns escadões e corria pra casa dela, porque eu amo bolo de cenoura com cobertura de chocolate”. O pai de Cilene teve um açougue na rua Emilia Marengo e, ao contrário dos machões com os quais ela precisou conviver, tinha orgulho da profissão que a filha escolheu. “Na minha família, eu sempre tive apoio. Preconceito, apenas de pessoas do meio cervejeiro”..

Hoje, ao olhar para trás e rever a trajetória que a levou até o lugar em que está, Cilene faz questão de reiterar a sua filosofia de que não se pode deixar de lembrar de onde você veio. “Nada caiu do céu para mim. E acho que todo esse contexto mostra isso. Então, só posso dizer que se não há empenho, você desiste, porque foi preciso muito dinheiro e esforço para fazer essa história vingar”. Por isso, ela só vê motivos para comemorar a profissão que escolheu e a determinação que a levou até onde está hoje. Com cerveja, é claro!

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