Desvendando o caminho do Tatu 0 3703

Este poderia ser mais um documentário daqueles que exageram nas tintas na hora de falar das coisas do bairro. E não se trata de qualquer bairro, diga-se de passagem. Afinal, o Tatuapé foi a primeira região a leste de São Paulo a despertar o interesse do mercado imobiliário, de empresas e de grifes famosas, que trataram de buscar um pedacinho do solo tatuapeense para instalar suas unidades.

Com uma infra-estrutura que não fica devendo nada a bairros considerados mais nobres, como o Morumbi e a região dos Jardins, o Tatuapé fincou pé na oferta de serviços de primeira e tornou-se um lugar desejável para se morar. Mas esse Tatuapé que se desvenda, para além do gigantismo atingido, é aquele que nunca esquece seu passado glorioso, de região brasileira pioneira na prática da viticultura, tendo sua primeira vinícola instalada por Brás Cubas em 1551. Essa atividade foi a principal fonte de economia do bairro e atingiu seu apogeu em fins do século XIX com a instalação das vinícolas de famílias de imigrantes italianos como os Marengo e os Camardo, cujos membros hoje emprestam seus nomes a algumas ruas do bairro e agora figuram em documentário inédito, produzido por um também tatuapeense, o publicitário e cineasta Fernando Bezerra.

Nesta entrevista, o cineasta explica a escolha do tema, revela um pouco do clima dos bastidores das gravações, lembra que o apoio de Pedro Abarca, historiador oficial do bairro, foi imprescindível para unir todos os elementos, e já adianta que tem muito pela frente: fazer do Tatuapé uma espécie de Paulínia, cidade estúdio de oito entre dez produções nacionais. Por aqui, a idéia é oferecer fonte inesgotável de enredos, tramas e locações. É sonhar alto demais? Pode ser, mas o primeiro passo já foi dado.

O que te levou a fazer um documentário sobre o Tatuapé?

Sempre estive ligado ao mundo da criação e a paixão por cinema vem da idéia que essa é a mais rica forma de reunir diversas linguagens de uma só vez: texto, fotografia, imagem, por exemplo, dão uma dimensão completa desse processo criativo.

Você veio do mercado gráfico e publicitário?

Sim, trabalhei muito tempo desenvolvendo embalagens para grandes marcas, e participei da criação de diversas campanhas publicitárias, o que acabou me levando a montar uma produtora e passar a trabalhar também com audiovisual. A princípio, produzi muito material e conteúdo para televisão, criei roteiros para empresas do porte de um Grupo Estado, por exemplo, e produzi filmes institucionais e motivacionais.

Aí lhe deu um start na cabeça de fazer filmes mesmo?

Comecei com curtas-metragens. O primeiro deles foi “A última corrida”, que participou do Festival de Curtas de Atibaia e ficou entre os 100 melhores. A história gira em torno do cotidiano de um moto-boy. Foi aí que descobri o caminho que queria trilhar.

Você fez dois dramas, uma comédia, participou de festivais importantes, como o 5 minutos e o Festival Internacional de Audiovisual de Atibaia, e agora arrisca um documentário sobre um bairro tão tradicional como o Tatuapé. Por quê? 

Primeiro porque vivo minha vida no Tatuapé, minha produtora fica aqui, minha família também, e depois porque é sempre bom aceitar o desafio de enveredar por uma nova seara. Num dos meus curtas (Conseqüências), tive que dirigir atores seminus e precisei ter a sensibilidade de retratar o nu de forma artística, sem vulgarizar. E consegui. No filme encomendado pela Prefeitura de Atibaia (A Lenda), tive que retratar o personagem, um sapo descoberto por um cientista recluso que não autoriza a imagem do mesmo, a não ser para falar dele como símbolo do festival, em ritmo de comédia e transformando o mesmo numa lenda. Driblei a falta de informação e consegui realizar o que me pediram. Quer dizer, depois de todos esses desafios, percebi que havia chegado a hora de fazer um documentário, numa linguagem mais moderna e atual.

E como foi que você fez para unir o antigo e o novo?

Primeiro, fazendo uso de recursos de computação gráfica, tal como os que são feitos em documentários como os do Discovery Channel ou o The History Channel. Esses são recursos disponíveis hoje, e que são muito pouco utilizados em documentários nacionais. Gravamos tudo em digital, que não perde em qualidade mesmo sem se utilizar película, e permite uma redução de custos considerável.

Também criamos a figura de um tatu que entra e sai pelos buracos, que na verdade são as várias fases que vão sendo apresentadas cronologicamente, ou melhor, desvendadas.

Tudo isso costura com a narrativa feita de forma envolvente por Pedro Abarca, que mais do que historiador, já se tornou personagem das próprias histórias que conta sobre o Tatuapé.

Para montar tudo dentro de uma realidade histórica, consultamos o acervo rico de fatos e fotos da Gazeta (do Tatuapé) que, aliado aos depoentes que deram suas versões dos acontecimentos, permitiu chegarmos a um resultado precioso, um verdadeiro tesouro de vidas que hoje estão na casa dos 70, 80 anos.

Por isso a idéia de usar essas ‘sobras’ tão ricas?

Com certeza dá para fazer diversos filmes desses depoimentos. Um sobre o futebol, outro sobre as indústrias, os estaleiros, e por aí vai. Para chegar ao resultado final de uma hora de documentário está difícil (risos).

Como você resume essa magia que o cinema carrega?

Transformar algo que não existe (idéias, pensamentos) em realidade.

Casa do Tatuapé

A Casa do Tatuapé é uma construção característica do período bandeirista. Sua construção, em taipa de pilão e pau-a-pique, situa-se, provavelmente, no período de 1688 a 1698.

Em 1668, era proprietário da área, onde se localiza o imóvel, o padre Matheus Nunes de Siqueira, que nomeou Mathias Rodrigues da Silva como administrador de seus bens. A este último é atribuída a construção da casa, pois em 1698 o imóvel aparece pela primeira vez descrita no testamento de Catarina D’Orta, sua esposa.

Durante um século e meio, a casa serviu apenas como moradia. Depois disso, passou a ser utilizada também como olaria que, até o final do século XIX, produzia exclusivamente telhas. Com a chegada dos imigrantes italianos, disseminadores da construção em alvenaria, passou a produzir tijolos.

Seu último proprietário, que ali residiu de 1877 a 1943, ano em que faleceu, foi Elias Quartim de Albuquerque. Em 1945, a casa foi adquirida pela Tecelagem Texília e tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional. Em 1979, o Município efetivou a desapropriação do imóvel que, a seguir, foi restaurado, revitalizado e finalmente aberto à visitação pública em 1981. A partir de 1993, com a criação do Museu da Cidade, a Casa do Tatuapé passou a ser um de seus pólos de atuação.

A Casa está localizada no número 49 da Rua Guabijú, e promove atividades voltadas prioritariamente ao público da Terceira Idade.

(Fonte: site do DPH – Departamento do Patrimônio Histórico)

PORTFÓLIO

Quem é esse gigante através de seus personagens?

Nesses 340 anos bem vividos do bairro do Tatuapé, comemorados no dia 5 de setembro, Dia da amizade verdadeira e da Amazônia, muito já se cantou em verso e prosa sobre essa parte da cidade. Alguns trechos a seguir revelam um pouquinho do que se pode esperar do enredo que pautou o documentário “Tatuapé – Desvendando o Caminho do Tatu”, ou seja, a história contada através de seus personagens ilustres e dos seus também ilustres moradores.

Osmar Basílio revela detalhes ímpares da história do Tatuapé
O cineasta Fernando Bezerra com
Mário Frassi, um dos depoentes do filme
Francisco Marengo era filho de Benedicto Marengo, comprador da Vila Gomes Cardim
Em 1943, a família Frassi instalou-se no Tatuapé, onde fabricava barcos para a Chácara do Piqueri
Com infra-estrutura que não fica devendo nada a bairros considerados mais nobres, o Tatuapé tornou-se uma região desejável para comerciantes e moradores

A VITICULTURA E A FAMÍLIA MARENGO

Foi o patriarca dessa família, Benedecto Marengo, que deu início àquele que viria a ser, mais tarde, um dos mais profícuos empreendimentos relativos à viticultura do nosso País. Benedecto nasceu em Turim, na Itália, no ano de 1848. Era casado com Maria Buonono e pai dos seguintes filhos: Josefina, João, Francisco, José e Caetano. Nos anos finais do século 19, grande número de europeus sonhava em mudar de sorte, e o Eldorado apontava para as Américas. Em 1884, Benedecto se decide pela grande aventura. Acompanhado pela mulher e pela prole, embarca num dos inúmeros barcos que partiam de Gênova, deixava para trás miséria e agruras, projetava à frente esperanças e sonhos. Por ter parentes nos Estados Unidos, a primeira idéia que lhe acudiu à mente foi a de viajar para aquele país. Mas, na longa e exaustiva travessia marítima de três meses, mudaram suas perspectivas: os EUA foram deixados de lado, tomando primeiramente seu lugar a Argentina e, em seguida, o Brasil. Talvez em contato com outros viajantes tenha obtido boas informações a respeito do nosso clima e das nossas terras. Desembarcou no porto de Santos, dali seguindo para o planalto paulistano. Em pouco tempo, estava empregado, acostumado às lides da terra, cuidava dos principais jardins centrais da cidade: Parque da Luz, Praça da República, naquele tempo, chamada Praça dos Curros. Sua seriedade e aplicação o elevou a chefe do Departamento de Parques e Jardins da cidade. […] em meados de 1887, Benedecto Marengo comprou uma gleba de 24 mil metros quadrados na região que hoje conhecemos por Vila Gomes Cardim, entre as atuais ruas Serra de Bragança, Cantagalo, Francisco Marengo e Monte Serrat. Anos mais tarde, Marengo compraria terrenos contíguos. […] Em 1889, Marengo manda vir da América do Norte certa quantidade de uvas, entre elas a Niágara. […]  Em nossa terra ficou conhecida como “Uvas Marengo”.

A FAMÍLIA FRASSI 

Por volta de 1887, uma lei facultou à Intendência Municipal arrendar terras ribeirinhas a empreendedores que se dispusessem a instalar olarias às margens do Rio Tietê. Esse fato ocorria justamente numa época em que afluía grande número de imigrantes para São Paulo. A feliz coincidência resultou no surgimento de inúmeras olarias entre a Vila Maria e Ermelino Matarazzo, só na região do Tatuapé mais de uma dezena. A maior parte dos proprietários dessas olarias era de origem italiana: Antonio Fiore, Perrella, Pedro Campanella, Francisco Delbucci, Miguel Mastrobuono, Francisco Matarazzo, Felício Napolitano, Celestino Passini, Pascoal Colatesta, Viúva Carlina e outros. Diversos fatores contribuíram para o sucesso desses rudimentares estabelecimentos: argila em quantidade e de boa qualidade na zona ribeirinha, mão de obra abundante e barata e o fácil escoamento da produção. Naquela época de precárias condições de transporte, o fluvial mostrou-se de grande eficácia e foi amplamente utilizado. Barcaças de 16 e 12 metros de comprimento, conhecidas por batelões, subiam e desciam as águas límpidas e serenas do Tietê todos os dias. […] Mas, o que nos interessa neste ponto não é o transporte de mercadorias e sim a fabricação dos tais barcos. Tal solução só foi possível devido à chegada às terras de São Paulo de um imigrante italiano. […] Por volta de 1917, Labindo Frassi, o imigrante citado, abandonou Livorno e viajou para o Brasil. Após curta estada em nossa terra, voltou para a Itália, casou-se com Líbera Frassi, e em companhia da esposa fez uma segunda viagem para cá. Chegando a São Paulo, imediatamente deu-se conta das extraordinárias condições oferecidas pelo Rio Tietê para o transporte fluvial. […] por volta de 1943, instalou-se no baixo Tatuapé, no trecho final da atual Rua Tuiuti. […] Devido à proximidade da Chácara do Piqueri, de propriedade de Francisco Matarazzo, os Frassi foram seus fornecedores constantes.

O CONDE FRANCESCO MATARAZZO 

Em 9 de março de 1854, nascia em Castellabate (Castelo do Abade), sul da Itália, Francesco Matarazzo. Com 18 anos, morre-lhe o pai. Por ser o filho mais velho teve que se dedicar à liderança e sustento da família. Esse fato impediu-lhe qualquer possibilidade de ir além do estudo fundamental.

Em 1881, com 27 anos, desembarcou no porto do Rio de Janeiro. Mandara vir da Itália uma tonelada de banha de porco que pretendia comercializar no Brasil. Para sua infelicidade, o barco que trazia o produto afundou antes de aportar em terras brasileiras. Sem dinheiro e sem perspectivas, não lhe restou alternativa senão viajar para Sorocaba, em São Paulo, à procura de um conterrâneo: Fernando Gradino. Ajudado por este e por outros amigos, conseguiu alguns recursos e montou uma modesta mercearia. Em pouco tempo se evidenciava seu arguto senso de negociante.

[…] Mas, para nós tatuapeenses, interessa-nos principalmente o fato referente à compra feita por ele do sítio Piqueri em 1927. Esse sítio era o remanescente da maravilhosa área verde que um dia pertencera ao desbravador Braz Cubas e ao empreendedor Matheus Nunes de Siqueira. Por essa época, entre a velha casa do padre Matheus e o trecho do Piqueri, as terras já haviam sido desmembradas em inúmeros lotes, que pertenciam a várias famílias. No entanto, o sítio comprado pelo Conde ainda continha exuberante flora, nele pontificando esplêndidas árvores centenárias. A propriedade chegava até as margens do Tietê, paraíso dos chorões e de outras espécies de árvores ribeirinhas. Simultaneamente à aquisição do sítio, Matarazzo comprou também a olaria de Genaro Perfetto, localizada nas imediações. Naqueles dias de precários meios de transporte, o rio Tietê representava excelente escoadouro para a produção, tanto dos produtos da chácara como dos produtos provenientes da olaria.

ANÁLIA FRANCO – A grande dama da educação brasileira 

Foram muitos os grandes vultos que passaram pelo Tatuapé, mas pela grandeza de sua obra, um deles merece especial destaque: Anália Franco. […] Realizou seus primeiros estudos em Resende, sempre acompanhada por sua mãe, que era professora. Em 1861, vieram ambas para São Paulo. Aqui, continuou seus estudos em escola dirigida por sua progenitora. Em 1876, mãe e filha mudaram-se para Guaratinguetá, nessa cidade começando Anália a lecionar. Em 1877, é reaberta a Escola Normal de São Paulo, na qual pôde ela matricular-se e concluir seus estudos, diplomando-se em 1878.

[…] Em 17 de novembro de 1901, juntamente com um grupo de senhoras de todos os níveis, funda a Associação Feminina Beneficente e Instrutiva de São Paulo. Objetivo: proteger e educar crianças das classes desvalidas e as mães desamparadas. […] O primeiro endereço da entidade foi no Largo do Arouche, 58 e 60. Em 1903, após os primeiros passos, veio a ser instalada na Ladeira do Piques, 13 a 21, próximo da atual Praça das Bandeiras. Em 1960, mudava-se para a Rua São Paulo, 47 e na Rua dos Estudantes (atual 15 de Novembro), 19. Em 1910, nova mudança, desta vez para uma chácara em Pinheiros e, finalmente, para a Chácara Paraíso, nos Altos do Tatuapé. Nesse local permaneceu até os últimos anos do século passado. A Associação mantinha ainda escolas em diversos bairros operários: Brás, Mooca e Bom Retiro.

[…] É enorme o número de escolas, asilos e liceus criados por Anália Franco e por outras pessoas que se inspiraram em seu imorredouro exemplo. Contam-se mais de uma centena entre as da capital e as do interior. Aliás, só no interior são 49 instituições. Anália foi professora, escritora, jornalista, poeta, educadora e pedagoga. Talvez a maior nascida no País.

Fonte: Arquivo histórico da Gazeta do Tatuapé

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